quarta-feira, 21 de julho de 2010

ANOTAÇÕES PARA UM ROTEIRO DE CINEMA


"Sinto que meu corpo se renova, o que não significa que estou vivo, biologicamente falando, mas meu corpo parece recuperar os sentidos".


A história de um Frankenstein brasileiro, que é ressuscitado numa mesa de dissecação, apaixona-se por uma aluna de Medicina, empreende uma aventura até a Amazônia, depara-se com uma equipe de Jacques Cousteau, gera oito filhos e torna-se um lenhador zoófilo.

CENA 1.
As primeiras imagens são de uma cena não aproveitada de “Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard), que teria provocado gargalhadas no público nas exibições-teste do estúdio. Mas que aqui ficariam perfeitas.
Mostra uma sala com vários mortos, todos cobertos com lençóis e etiquetados nos pés. Eles (os cadáveres) conversam entre si.
(Pensei em pintar carinhas nos dedões dos pés dos cadáveres, para que eles os mexessem enquanto falavam, mas seria dar comicidade demais à cena. Por que não escrevo algo do tipo Raskholnikov? Será por que não sei uma palavra em russo?)
Os diálogos são convencionais e tratam das causas das respectivas mortes. Cada um dos defuntos conta a sua história, o que deve ser curto. Os mortos estão cobertos com lençol, alguns entrando em estado de putrefação, outros com as partes pudendas descobertas, o que não é nada higiênico.
Um dos mortos diz que era trabalhador na construção civil e caiu em um buraco. Dois dias depois uma retroescavadeira encheu o buraco de terra. “E minha marmita ainda estava esquentando”, reclama. “Pior. Acho que vão descontar os meus dias”.
(Nessa parte poderíamos colocar um coral grego e uma música do Chico Buarque. Não sei. É uma sugestão)
O outro era um ensandecido – evitemos aqui a palavra louco de pedra, porque, ao que consta, ele também carregava uma faca e um boticão para extrair dentes. Ele diz que costumava sair pelo bairro recitando poesias em voz alta. Certo dia teria sido enfiado em um saco e levado para um lugar desconhecido. Desconfia que tenha sido atirado de um precipício. “Que horrível”, comenta um. “E eu estava nas últimas páginas”, diz ele.
A história do narrador desta história é mais singela. Ele cortava a grama quando uma mosca pousou em seu pescoço suado. Parece que isso o irritou tanto que ele foi acometido de um ataque cardíaco. Inicia-se uma discussão sobre a causa da morte. Alguns acham que não era uma mosca, mas uma abelha. Talvez uma abelha africana. O narrador nega. Diz que tem certeza que era uma mosca, mas é tarde demais. O debate começou. “Talvez fosse uma mosca da cabeça branca”. “O que você quer dizer?”, pergunto. “Aquele filme com o Vincent Price, ele encontra uma mosca na teia de aranha. Ela tem a cabeça de um homem e grita: ‘socorro, socorro’. Até que Price, horrorizado, destrói a teia e mata os dois bichos”.
Fico pensando: tanto lugar para morrer e tinham que me reservar lugar justo na câmara de horrores do Dr. Phibes...

CENA 2.
Minha mulher vem me visitar. Sei que é ela porque ouço uma voz esganiçada e um mexer de mãos irritantes. Certamente ela está balançando as moedas do ônibus dentro da bolsinha pequena, enquanto fala com o atendente. Parece que ela tem que preencher um relatório e já adianta, a sovina, que não tem dinheiro para o enterro, portanto que me classifiquem como indigente.
A certa altura ela lê um trecho do relatório e indaga do enfermeiro, eu creio que ele é um enfermeiro, sobre a possibilidade de doar o corpo para dissecação. Ele diz que é possível, mas ela terá que preencher mais papéis. Ela diz que não vê problema. Assim, sou colocado na gaveta 53 de uma sala refrigerada e, tempos depois, despachado para uma Faculdade de Medicina.

CENA 3.
Eu abro os olhos. Ou pelo menos penso que eles estão abertos, e em torno de mim há um grupo de estudantes em jalecos brancos, observando-me atentamente. O professor, um senhor grisalho postado atrás de minha cabeça, diz palavras que eu não consigo entender muito bem, enquanto maneja um bisturi e descarna a minha face, mostrando a capa de gordura que cobre o crânio.
A certa altura, os alunos descobrem o lençol sobre as minhas partes pudendas e as alunas ficam especialmente maravilhadas com a visão (modéstia à parte, é claro).

CENA 4.
Minha mulher resolve que deve me visitar na Faculdade de Medicina. Vem numa tarde, acompanhada das amigas do grupo de tricô e, em volta do meu corpo, tagarelam o tempo inteiro.

CENA 5.
Desta vez são poucos alunos na sala de aula. As mulheres são maioria. Meu corpo é removido para uma mesa de dissecação e a lição de hoje consiste em usar o desfibrilador cardíaco. Não sei por que, mas na hora em que usam o aparelho, sinto que meu corpo se renova, o que não significa que estou vivo, biologicamente falando, mas meu corpo parece recuperar os sentidos.

CENA 6.
Espero que me devolvam à gaveta e começo a exercitar os movimentos do meu corpo. Começo com os dedos dos pés. Depois os dedos das mãos. Depois movo a cabeça para um lado e para o outro e, enfim, abro os olhos.

CENA 7.
Há uma estudante que resolveu trabalhar sozinha no meu corpo. Ela é uma daquelas que ficou impressionada com meu membro sexual. É bonita, magra, tem seios grandes, e uma bunda que, olhando de soslaio, imagino que guarda delícias inimagináveis. Demoro para descobrir o seu nome. O atendente de enfermagem encarrega-se de esclarecer: “Catarina”. Catarina, Catarina, Catarina.

CENA 8.
Arrisco-me a sair da gaveta durante as madrugadas. (Eu havia imaginado que o narrador se interessaria por zoofilia. E que o sonho dele seria fugir para um campo onde se regozijaria com vacas, éguas e ovelhas. Mas isso seria desvirtuar demais a história. De qualquer maneira, é uma dica para quem gosta de turismo rural).

CENA 9.
Olho-me em um espelho pela primeira vez e não gosto do que vejo. Meu rosto está descarnado e várias partes do meu corpo foram abertas e depois costuradas. Ainda não abriram o meu cérebro, talvez porque não haja muito a descobrir ali. Eu apanho livros nas estantes e começo a ler tudo o que me cai nas mãos. Aprendo os rudimentos da anatomia, da neurologia, da ortopedia, da fisiologia. É chato pacas. Por sorte, há também várias revistinhas de sacanagem nos armários dos funcionários.

CENA 10.
Sou surpreendido por Catarina em uma noite. Ela me vê na penumbra. Pensa tratar-se de um ladrão. Quando ameaça gritar, eu digo o seu nome e minha voz sai pausada e grave. É a primeira vez que exercito as minhas cordas vocais.

CENA 11.
Catarina me considera uma grande descoberta. E quer esconder o segredo de qualquer maneira. Faz vários testes com meu corpo, mas não consegue entender como estou vivo. Claro que ela ainda está interessada no meu membro sexual, mas seu entusiasmo é científico. Do meu lado, eu estou deliciosamente apaixonado e espero me declarar assim que tiver uma oportunidade. Quem sabe quando ela vestir as luvas de borracha e começar a explorar o meu canal retal (que mania besta!) ou manusear minhas pernas. Bom, eu também posso lhe passar uma rasteira ou lhe aplicar um golpe de jiu-jitsu. Não sei. Me sinto estranho.

CENA 12.
Finalmente me declaro para Catarina e ela não parece surpresa. Diz que apenas é o momento errado. Além do mais eu estou morto. Que futuro nós poderíamos ter? Ela não poderia nem fazer um seguro de vida para a família. Digo que ela tem razão e procuro esquecer o assunto.

CENA 13.
Em uma das noites, ela abre a gaveta e se deita ao meu lado. Sob o jaleco de estudante, ela reserva apenas o seu corpo nu. Ah, por que não a sainha plissada e as meias três quartos brancas? Na coxa, revela-se a liga roxa, marca indelével da irresistível devassa. Com o terceiro quirodáctilo toco em sua conchinha. Ela reclama do dedo gelado, mas depois se acostuma. Sibila como uma piton albina de manchas amareladas e logo se apodera, com voracidade, da minha espada do anjo vingador. Ela murmura: “Meu mortinho, meu zumbi, meu morto-vivo”. E eu nem ligo. Quando enfim ela aproxima-se do clímax, mia baixinho e encosta o rosto no meu ombro descarnado. Uma hora depois, abro os olhos e ela já foi embora.

CENA 14.
Somos surpreendidos pelo professor de Catarina, que já havia demonstrado desejos carnais por ela. Furioso, ele anuncia que pretende fazer uma aula especial comigo. Primeiro abrir minha caixa craniana e retirar meu cérebro. Depois emascular o meu mastro dos sete prazeres. Para ajudá-lo, ele convoca um segurança cuja compleição física é de fazer inveja a qualquer Mister Universo. Já na mesa de dissecação, eu consigo apanhar um bisturi e corto o pescoço do médico. Resta o segurança. Ele me domina e, então é a vez, de Catarina usar a serra elétrica para abrir-lhe um talho nas costas. Eu a ajudo com um fórceps que aperto em torno do seu pescoço, até que ele pare de se contorcer e cai prostrado no chão.

CENA 15.
Nós fugimos com certa facilidade. Ela me cobre com um casaco e uma capa longa. Me põe um chapéu e um cachecol. Seguimos até o aeroporto e ouço ela pedir ao balconista da viação aérea duas passagens para Manaus, sem escalas. Entre os documentos que ela apresenta, um é o do médico morto.
Quando embarcamos no avião, ela pede cobertores e um travesseiro. Liga o ar gelado, de modo a evitar que o cheiro de formol que exalo chegue aos passageiros e tripulantes. Ainda assim, há reclamações, mas as aeromoças se encarregam de jogar na tubulação uma espécie de bom ar, que maquia o meu odor fétido. Eu me sinto um pedaço de carne pendurado no gancho de um açougue. Ainda assim, Catarina, a perversa, escorrega os dedos sob as cobertas e consegue alcançar meu ferro em brasa. Brinca com ele durante as quase oito horas de viagem.

CENA 16.
Por sorte, Catarina tem dinheiro suficiente no banco para comprar uma casa num lugar retirado em meio à floresta amazônica. Lá constituímos família. Em pouco tempo, nasce o primeiro filho. Para estabilizar a energia do seu corpo e mantê-lo vivo, ela instala dois eletrodos em seu pescoço. Faz o mesmo comigo. Pela manhã, eu me instalo ao lado de uma tomada elétrica e ligo um aparelhinho que é muito parecido com um recarregador. Sou quase uma pilha humana (Catarina me chama de Eveready, a pilha do gato. Não sou dado a gracinhas). O mesmo faço com meu filho. Ao longo dos sete anos seguintes, nascem outros sete meninos. Catarina entra no negócio da indústria madeireira e, como não pode contratar funcionários, nos treina como lenhadores – desconfio que essa sempre foi sua intenção.

CENA 17.
Um dia, quando eu e meus oitos filhos nos ocupamos em cortar árvores centenárias com machados e serras elétricas, nos deparamos com um grupo de franceses. Há um intérprete entre eles, que nos conta que são membros da equipe de Jacques Cousteau, oceanógrafo morto em 1997. Ao notar os eletrodos em meus filhos (o meu está escondido sob a gola da camisa), eles pensam tratar-se de uma nova tribo indígena e ficam entusiasmados. Não por muito tempo. À noite, durante o jantar oferecido por Catarina, nós matamos todos, e os jogamos aos jacarés. Um banquete e tanto.

CENA 18.
Catarina mudou. É agora uma mulher de negócios. A única que tem contato com o mundo exterior. Eu sonho com a morte, mas sou incapaz de dar fim a tudo por causa dos meus filhos. Quando Catarina nos deixa para fazer suas longas viagens, ponho meus filhos para dormir por volta de nove horas e saio para caminhar em meio à floresta. Estranhamente, a morte me fez desenvolver um olfato especial e logo sinto a presença de uma vaca, de uma ovelha, de um bezerro, de uma cabrita ou até de uma égua, a minha preferida. Se elas estão no cio, tanto melhor. Do contrário me encarrego de enfiar minha espada de anjo vingador em suas vaginas latentes e satisfazer o meu desejo. Só dessa maneira me sinto vivo.

0 comentários:

Postar um comentário

Somente aqui a sua mensagem não precisa passar pelo crivo da censura. Use e lambuze, mas respeite a Convenção de Genebra.

POLÍTICA DO BLOGO

É permitido opinar, criticar e discordar dos posts e comentários publicados neste espaço desde que a Convenção de Genebra não seja mandada às favas. Também concedo-me o direito de observar os bons e maus costumes. Ou seja, filtrarei, deletarei e empalarei as agressões pessoais abaixo da cintura e os vitupérios dirigidos a outros que não este blogueiro (falem mal, mas falem de mim). No mais, soltem a franga.

  © Blogo Marcus Vinicius 'www.blogodomarcus.com.br 2008

Voltar para CIMA