terça-feira, 22 de setembro de 2009

A VELHA NICOTA

Nicota, maldita seja, nasceu em uma cidadezinha de Minas Gerais e viveu uma vida mais longa do que se lhe fosse dado escolher. Casou aos 13 ou 14 anos e teve onze filhos. Três deles foram lutar por São Paulo na Revolução Constitucionalista de 1932.
Os mineiros getulistas não perdoaram. Atearam fogo nos colchões e depois na casa. Nicota juntou os poucos pertences que lhe restaram em uma malinha de papelão, apanhou os filhos pequenos e foi parar em São Paulo, onde o marido devia estar à sua espera. Não estava. Dele nunca mais se ouviu falar.
Da capital paulista foi para o interior do Paraná e soube que um filho morrera na guerra. Não de tiro, mas de ataque cardíaco. O desgraçado nem medalha póstuma recebeu. Nicota criou a filha e esta imitou-lhe a sina. Pariu a primeira filha aos 13 anos, a segunda aos 15, e o marido - um motorista de táxi - abandonou-a quando a caçula mal completara seis meses.
Quando enfim Nicota ficou velha, e isso levou uma eternidade, iniciou a peregrinação pela casa dos parentes. Morou com um das netas em São Paulo, mas logo se desentendeu. Saiu cuspindo brasa, carregando uma pequena mala e uma dezena de sacolas onde guardava linhas de crochê.
Certo dia, bateu os olhos no bisneto medroso e remelento, e achou que lhe faria bem um passe na casa de macumba do bairro. Foi um estrago. O menino passou a ter pesadelos e a acordar Nicota, que dormia no mesmo quarto, jurando por tudo que era sagrado que o preto velho estava sentado em uma cadeirinha perto da porta.
Logo se descobriu que o desentendimento com a outra neta tinha razão de ser. Nicota não tomava banho regularmente e também não punha as roupas para lavar. As meias finas, que ela usava diariamente no frio ou no calor, eram escondidas debaixo do colchão e o odor tornara-se insuportável. Não bastasse isso, a velha costumava guardar no armário lenços sujos, onde cuspia  e assoava o nariz.
Contrariada, Nicota foi passar alguns dias na casa de um dos filhos na Parada Inglesa, mas a nora paralítica não a deixava sossegada.
Voltou enxabida para o mesmo lugar onde abandonara o menino medroso e remelento, ainda tendo visões do caboclo mamador, e se aquietou por uns tempos, mas sem abrir mão dos hábitos nojentos.
Ao menos uma vez por mês, as netas se reuniam para pintar os cabelos de Nicota, já brancos e ralos. Escolhiam a cor ao acaso. Azul, cinza, acaju. O fedor do produto, contudo, recendia na casa e impregnava tudo que se punha na boca.
Um dia Nicota decidiu que era hora de visitar a filha em Santos, no litoral de São Paulo. Foi e não voltou. Tinha 83 ou 84 anos. Não havia documentos que comprovassem. Passou mal e a filha mandou chamar o médico. Fazia um calor insuportável quando Nicota expirou no pequeno quarto da quitinete. Ironia. Ela detestava o calor.

1 comentários:

Banda de Sucupira 6 de outubro de 2009 às 14:55  

Gostaríamos que o blogueiro atualizasse o espaço com mais frequencia pois é um dos escritores mais independentes que temos por aqui.

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