MEU REINO POR UM SOFÁ
David Goodis, autor de "Lua na Sarjeta" e "Atirem no Pianista" (que em Portugal chamou "Disparem Sobre o Pianista"), era um exímio apreciador de sofás. Quando mudou para Hollywood, contratado pela Warner, foi morar num hotel miserável na Yuca Street (a mesma em que vivia Philip Marlowe, o personagem-símbolo de Raymond Chandler) e tratou de alugar o sofá de um amigo a 4 dólares por semana. Dormia ali depois de passar o dia no estúdio e à noite no bairro pobre de Los Angeles, aonde encontrava mulheres de sua preferência: negras e rechonchudas. Era a década de 40 e Goodis faturava 750 dólares por semana e suas razões para dormir em um sofá eram antes motivadas por uma fama que o perseguia e que, de fato, justificava-se. Goodis era um notório pão-duro. Digo tudo isso para lembrar do velho hábito de dormir em sofás que toma conta da sociedade contemporânea. Não culpem essa invenção chamada TV. O sofá a precede e tem servido de cama e de espreguiçadeira para milhares de marmanjos espalhados pelo mundo. Em tempos mais inocentes (aqueles da infância querida que não volta jamais), quando havia apenas uma televisão – o xodó da família – e o sofá precisava ser dividido com duas ou três pessoas, desenvolvi técnica de contorcionismo que consistia na proeza de deitar no espaço diminuto de uma almofada. Desse modo, recusava-me terminantemente a seguir para a cama ou abrir mão de um milímetro de meu espaço numa disposição corporal que, não raro, fazia com que, no esforço para me acomodar, machucasse o queixo com a unha do dedão do pé. Quando a guerra por território tornou-se uma espécie de regra e ficou claro que minhas pernas compridas já não possibilitavam que me acomodasse em apenas um dos quatro assentos disponíveis no sofá, para exatos quatro irmãos, estabeleceu-se a lei do cão. Tomava conta do sofá quem primeiro dele se apossasse. No começo houve rebeliões, mas nenhuma delas surtiu efeito. Como havia duas poltronas e nelas acomodavam-se os meus pais, restou o confronto fratricida pelo território do sofá. Brigava-se pelo espaço do braço, pelo espaço das pernas e até por centímetros invadidos na fronteira que separava as almofadas. Como o horário do jantar era também o de maior disputa pelo sofá, convencionou-se comer na sala. Em breve, a regra estendeu-se para as quatro refeições e os encontros familiares em torno da mesa foram rareando até extinguirem-se por completo. Ao menos em minha casa, foi o sofá o responsável por dizimar aquilo que chamam de célula mater da sociedade. Quando "contraí matrimônio", o termo doentio não é casual, levei para o aconchego do meu lar, um quitinete alugado no centro da capital paulista, as manias colecionadas ao longo da pôrra da minha infância, adolescência e em parte da fase adulta, que incluíam me esticar no sofá tão logo retornava do trabalho e só sair dali no fim da noite ou início da madrugada, já em estado de sonolência avançada. Nas raras vezes em que me utilizei do sofá para o propósito original de sentar foi para receber visitas – que, por sorte, eram breves, uma vez que aquele espaço de três ou quatro lugares, dependendo da forma esquálida ou roliça dos corpos que nele se abancavam, era o único lugar habitável no minúsculo espaço do apartamento. Lembro que, num dia especialmente iluminado, fui a uma loja de departamentos e saí dali com uma nota de compra de um sofá de dois lugares que, descobri depois, foi feito na medida para preencher o pequenino vão entre a televisão e a estante, onde instalei uma luminária que me permitia ler meus livros e, ao mesmo tempo, dar uma espiadela na televisão. Para justificar a aquisição e mais um carnê de crédito, cedi o sofá maior à minha mulher e ao meu filho, então bebê de colo e, fingindo humildade, escarrapachei-me no novo mobiliário da casa. Dorival Caymmi, o mais zen dos baianos, deleitou-se certa vez ao encontrar prazer na mistura de ventilador e poltrona de espaldar longo e inclinado. Pois o sofá de dois lugares era o meu pequeno paraíso, o meu Nirvana (e cada um tem o Nirvana que merece) do qual eu não abria mão nem quando o outro, o sofá maior, encontrava-se vago. Era o meu canto predileto, o lugar de minhas meditações e o espaço onde, macunaímico, esperava a chegada de Morfeu, o deus mitológico do sono. Mesmo o fato de minhas pernas sobrarem no conjunto de assentos exíguo acabou tornando-se a porta para a idéia brilhante que me permitiu trocar os canais da TV ou acionar o vídeo-cassete com os dedos dos pés. O controle remoto só viria bem depois. Mas era nas madrugadas quando, insone, dirigia-me ao meu lugar preferido que reservava, longe do murmúrio e da orquestra dodecafônica das ruas de São Paulo, especial dedicação. Era ali naquele sofá, deitado em decúbito dorsal, que assistia a filmes clássicos gravados antecipadamente e lia os capítulos finais de livros, cujas páginas haviam sido economizadas propositadamente para aquele momento.
Juro, senhores, eu era feliz com meu sofá e não sabia.
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